quarta-feira, 26 de fevereiro de 2020

Pessoas trans: quantas são

Esta não é uma questão fácil de responder. Há determinados aspectos que complicam a pesquisa. Por exemplo: se a sociedade vê com simpatia as diversas expressões de gênero, as pessoas se sentirão mais à vontade para se manifestarem; é razoável supor que, a medida que aumentar a intolerância com as diversas expressões de gênero, mais difícil será se identificar. Outro problema: como fazer a pergunta? A elaboração da questão já traz, em si, uma resposta. “Você está satisfeito com seu sexo?” é diferente de interrogar “Você se identifica com o gênero que lhe foi atribuído ao nascer?” O entrevistador tem que se lembrar que conceitos não são compreendidos da mesma forma por todas as pessoas da sociedade, mesmo naquelas com alto nível educacional. Sexo e gênero não são sinônimos, mas muitos entendem que sim.


As publicações científicas sobre a prevalência (o número total de pessoas com certa característica em determinado momento entre determinada população) utilizam duas estratégias diferentes, que dão resultados também diferentes. Usando a contagem de pessoas que se identificam com trans e que buscam auxílio médico por essa razão, para algum apoio hormonal ou para procedimento de transgenitalização, temos as seguintes contagens:


tabela I
autor
data
onde
resultado
no Brasil seriam (1)
Pauly IB (2)
1.968
*
0,4:100.000**
837
Eklund PL (3)
1.976-1.980
Holanda
1,22:100.000
2.553
Eklund PL
1.976-1.983
Holanda
1,58:100.000
3.306
Eklund PL
1.976-1.986
Holanda
2,77:100.000
5.798
Landen (4)
1.972-1.996
Suécia
3,42:100.000
7.116
* não foi possível localizar o artigo original
** significa que em 100.000 pessoas haverá 0,4 pessoa trans


Pesquisadores que avaliaram o total de pessoal que solicitaram legalmente a modificação do gênero atribuído ao nascer encontraram:


tabela II
autor
data
onde
resultado
no Brasil seriam(1)
Weitze (5)
1.972-1992
Alemanha
2,1:100.000
4.395
Dhejne (6)
1.960-2.010
Suécia
16:100.000
33.488


Quando o estudo é realizado perguntando às pessoas se elas se consideram transgêneras, temos o seguinte quadro:


tabela III
autor
data*
onde
resultado
no Brasil seriam(1)
Conron (7)
2012
EUA
500:100.000
1.046.500
Kuyper (8)
2014
Holanda
1300:100.000
2.720.800
Van  Caenegem (9)
2015
Bélgica
1900:100.000
3.976.700
* da publicação do estudo


Até a data de publicação deste texto, não foi encontrado estudo científico que fale sobre o número de pessoas transgêneras no Brasil. Há algumas evidências indiretas:
  • reportagem da Jovem Pan, de 30 de janeiro de 2020, informa que 6.086 pessoas mudaram de nome e gênero, nos cartórios, desde 2018. Como houve modificação de gênero, é razoável supor que são pessoas transgêneras. Este número está entre os dois maiores números das tabelas I e II
  • reportagem de 09 de novembro de 2019 informa que entre os 5.095.308 de inscritos no ENEM de 2019, 394 (0,08%) solicitaram o uso do nome social. Usando os dados do IBGE para 2010 (menores que em 2019), a população do Brasil era de 190.755.799 habitantes, e supondo que a amostra do ENEM fosse estatisticamente adequada, o total de pessoas trans seria 152.604. O que extrapola todos os números das tabelas I e II.




notas de rodapé:
(1) baseado na população estimada de 2017, 209.300.000 habitantes
(2) Pauly  IB. The  current status  of the change of  sex operation. J Nerv  Ment Dis 1968; 147:460-471

sexta-feira, 14 de fevereiro de 2020

Testosterona,estrógenos e bloqueadores devem ser suspensos antes de cirurgias?

Por que uma medicação deveria ser suspensa antes de uma cirurgia? Algumas razões:
- a medicação interfere com o resultado da cirurgia, de modo desfavorável
- a medicação aumenta os riscos da cirurgia
- a medicação aumenta os risco da anestesia
- a medicação torna a recuperação após a anestesia mais demorada
- a medicação torna a recuperação após a cirurgia mais demorada

Exemplo: o uso de ácido acetil salicílico (medicamento presente no AAS, Ronal, Aspirina, dentre outros) aumenta o tempo necessário para a coagulação sanguínea, o que pode aumentar as chances de problemas durante a cirurgia; o uso não informado de medicamentos para dormir pode fazer a recuperação após a anestesia ser mais demorada.

Mas há medicamentos que não podem ser interrompidos, exceto sob orientação do(a) cirurgião(ã) ou anestesista. Por exemplo, medicamentos para tratar hipertensão arterial e diabetes.

E quanto aos hormônios usados pelas pessoas transgêneras, binárias e não binárias?

Faltam estudos médicos bem feitos para resolver esta questão. Os que existem, atualmente, quando analisados em conjunto, sugerem que não é necessário descontinuar a testosterona (hormônio que induz características conhecidas na nossa cultura como relacionadas ao gênero masculino) ou a espironolactona (substância que bloqueia parcialmente a ação da testosterona). Os estudos que sugerem ser prudente suspender os estrógenos (hormônio que induz características conhecidas na nossa cultura como relacionadas ao gênero feminino) não foram realizados em pessoas trans, mas em mulheres cis com doses que, habitualmente, não são utilizadas pelas trans. E eles deram resultados que se contradizem.
Um grupo de pesquisadores comparou 4.598 pessoas que não usavam testosterona e 947 homens trans maiores de 40 anos que usavam e que foram submetidas a cirurgias diversas, nenhuma delas cardíaca. Os resultados foram os seguintes:

Problema de saúde
Percentual de homens trans acometidos
Percentual de homens cis acometidos
Morte após cirurgia
1,3%
1,1%
Infarto do miocárdio ("infarto no coração")
0,2%
0,6%
Acidente vascular cerebral ("derrame")
2,0%
2,1%
embolia pulmonar
0,5%
0,7%
Trombose venosa
2,0%
1,7%

Analisar esta tabela não é tão fácil como parece. É necessário muito cuidado para não chegar a conclusões erradas. Por exemplo, não pode ser concluído que testosterona protege contra embolia pulmonar ou acidente vascular cerebral ("derrame") ou infarto do miocárdio ("infarto no coração"). Uma análise que os estatísticos fazem pode dizer se o que parece ser verdade (testosterona aumenta muito pouco o risco de trombose venosa e o de morte após cirurgias) é realmente verdade.

Os dados que existem até agora, analisados por estes especialistas, sugerem que o uso de testosterona, estrógenos e espironolactona não aumenta os riscos durante e após cirurgias não relacionadas ao coração. Portanto, não é uma obrigação suspender esses hormônios antes. Mas pode ser uma sugestão do(a) cirurgião(ã) quando ele/ela se sentir mais à vontade e tranquilo para realizar uma cirurgia em pessoa trans.

quarta-feira, 5 de fevereiro de 2020

O desmantelamento do programa HIV/AIDS e a questionável politica de abstinência sexual




Quando se pensa a saúde pública, é mister estudar as demandas mais relevantes para que se possa estabelecer programas de saúde que beneficiam a todos aqueles que necessitam. Trata-se de estatística. Fato relevante. Trata-se de ciências! Prioriza-se o programa de acordo com a equidade, um dos pilares fundamentais do SUS, ou seja, pensa-se mais naqueles que mais precisam e menos a quem requer menos cuidados, até o momento em que todos deixam de requerer cuidados a mais ou a menos. A partir desse momento, estabelece-se uma igualdade no tratamento.

O programa de controle HIV/AIDS do Ministério da Saúde já foi considerado um dos melhores do mundo. Desde 1996, distribui gratuitamente os medicamentos a todos as pessoas que vivem com HIV. Esse fato fez, aliado a outras medidas preventivas, fez com o que a velocidade da disseminação das infecções diminuísse consideravelmente. Porém, há um risco do programa se desmantelar. A fala do presidente não parece apenas uma fala isolada e mal colocada. Logo que assumiu, importante mudança foi feita no "Departamento de Vigilância, Prevenção e Controle das IST, do HIV/Aids e das Hepatites Virais", órgão que era responsável pelas políticas de prevenção, controle e tratamento de infecções sexualmente transmissíveis (ISTs). O Departamento foi extinto e suas atribuições passaram a ser responsáveis pelo “Departamento de Doenças de Condições Crônicas e Infecções Sexualmente Transmissíveis”. O governo se antecipou afirmando que nada mudaria, mas o foco deixou de ser as ISTs para ser distribuído a diversas doenças crônicas. Lembrem que sempre foi uma ideia do presidente cobrar pelas medicações antirretrovirais - basta dar um google para verem essa declaração.

Junto desse desmantelamento lento, vem a questionável política "Tudo a seu tempo", que prega abstinência sexual para adolescentes. Essa política de abstinência sexual já se mostrou falha em diversos países em que ousou ser aplicado, tanto para o controle de gestações não planejadas como na prevenção de ISTs. Alguns governos de países africanos já tentaram instituir a abstinência sexual com o objetivo de controlar a epidemia do HIV/AIDS. O que se viu, no entanto, que a realocação de recursos para esse programa fez com que outros programas de prevenção ficassem deficientes. A população não deixou de ter relações sexuais e sem os métodos cientificamente comprovados de prevenção ao HIV/AIDS, a incidência das infecções aumentou consideravelmente.

Estudo publicado na Journal of Adolescent Health, em 2017 (v. 61, n.3, p 400-403), apontou que alguns estados dos EUA, na década de 80, também já promoveram campanhas semelhantes. O resultado foi frustrante: não freou o número de gestações não planejadas, deixou sem recursos programas de combate às ISTs, focou exclusivamente nos relacionamentos heterossexuais (ignorando a população LGBTQIA+) e estigmatizou as pessoas vítimas de abuso sexuais - já que de certa forma, elas "agiram" contrárias ao programa.

A lógica é simples, priorizando tais programas falhos (como os de abstinência) sobra menos recurso para aqueles realmente importantes: distribuição de preservativos ou mesmo de medicamentos (lembrem-se sempre i = i, ou seja, indetectável é igual a intransmissível). Ao que parece, estamos diante de um governo que finge não conhecer o significado real de saúde pública. Perde-se assim, recursos. Perde o Brasil. Perdem todos os brasileiros. O fim da política de prevenção e controle do HIV/AIDS (e distribuição de medicamentos faz parte deste programa) fará com que se aumente o gasto público com as complicações da infecção pelo HIV. E quem arcará com essa despesa? O SUS... o governo. Ou seja, antes que esse governo acabe com o SUS, ele gastará muitos mais milhões do que gastaria com programas de prevenção. Programas baseados em ciência. Em literatura científica confiável. Modelos de saúde replicáveis e eficientes. Definitivamente, não há espaço para crenças no trato da saúde pública.

segunda-feira, 3 de fevereiro de 2020

Quanto tempo as modificações no corpo surgem após início da hormonização cruzada?


Duas observações são necessárias neste tópico: hormonioterapia e cruzada.
Quando acontecer, neste blog, ser usado o termo hormonioterapia (por uma questão de clareza e objetividade), ele não deve ser entendido como "tratamento de uma disfunção", mas como a atitude hormonal conduzida por profissional habilitadx que tem o objetivo de levar uma pessoa a sua harmonia corporal possível.
Na área médica, o termo "hormonização cruzada" é usado para se referir à prescrição de estrógenos (hormônio ligado à presença do cromossomo sexual XX, presente naquelas pessoas culturalmente definidas como feminino) para pessoas que geneticamente não estão aptas a produzi-lo em quantidades suficientes para o crescimento e desenvolvimento de mamas, e à prescrição de testosterona (hormônio ligado à presença do cromossomo sexual XY, presente naquelas pessoas culturalmente definidas como masculino) para pessoas que geneticamente não estão aptas a produzi-lo em quantidades suficientes para o crescimento e desenvolvimento de barba.
O tempo entre o início do apoio hormonal à adequação do gênero e sua percepção corporal varia entre as pessoas. O tempo médio está informado nas tabelas abaixo:


Uso de estrógeno
Efeito
Início
Máximo
redistribuição gordura
3 a 6 meses
2 a 3 anos
redução força muscular
3 a 6 meses
1 a 2 anos
redução oleosidade
3 a 6 meses

redução libido
1 a 3 meses
3 a 6 meses
redução ereção espontânea
1 a 3 meses
3 a 6 meses
crescimento mamas
3 a 6 meses
2 a 3 anos
redução testículos
3 a 6 meses
2 a 3 anos
redução espermatozoides

> 3 anos
redução pelos
6 a 12 meses
> 3 anos


Uso de testosterona
Efeito
Início
Máximo
redistribuição gordura
1 a 6 meses
2 a 5 anos
aumento da força muscular
6 a 12 meses
2 a 5 anos
aumento da oleosidade
1 a 6 meses
1 a 2 anos
mudança na voz
6 a 12 meses
1 a 2 anos
recesso temporal
6 a 12 meses

ausência menstruação
2 a 6 meses

aumento do clitóris
3 a 6 meses
1 a 2 anos
atrofia vaginal
3 a 6 meses
1 a 2 anos
aumento dos pelos
6 a 12 meses
4 a 5 anos

fonte: Endocrine treatment of transsexual persons: an endocrine society clinical practice guideline. J Clin Endocrinol Metab. September 2009, 94(9):3132-3154 (acesse)
  

Fertilidade da pessoa transgênero

  Pessoas transgênero não são, por definição, incapazes de gerar crianças. Assim como qualquer pessoa, a história de vida pode acabar chegan...